terça-feira, 28 de abril de 2009

Reflexos

Eu sabia das histórias dos jacintos que cresciam nos jardins da casa grande, que, à noite, enquanto eu dormia, velavam os meus sonhos. Porque, em cada madrugada, eles se abriam para mim num sorriso.

Mas também sabia dos peixes multicores que, dentro do aquário, rejeitavam a sua prisão. Debatiam-se, nadando violentamente contra o vidro para chamarem a minha atenção. Resolvi libertá-los e deitei-os a nadar livremente dentro do poço grande.

Mas, um dia, um pássaro entrou violentamente pela janela e pousou veloz sobre os meus ombros franzinos. Estava ferido e não tinha olhos de pássaro. Eu ainda o tratei mas ele nunca mais voou. Um dia depois caiu repentinamente morto no chão da sala. Eu conhecia a palavra morte, mas não sabia o significado da morte.

Sabia ainda que as palavras poderiam ter a cadência que eu lhes quisesse dar. Por isso, gostava das minhas vozes a ecoar a uma só voz no silêncio das colinas, e ainda me lembro da doçura das manhãs na aldeia, enquanto fazia desenhos de água nas pétalas dos lírios tão frágeis quanto eu.

Hoje, eu sei mais do que sabia nessa altura. Porém, apenas sinto os reflexos da morte dos jacintos, dos pássaros e dos peixes, que nesta manhã me assaltaram cruelmente, enquanto lá fora os sonhos já não existem e a casa grande apenas resiste ao tempo…

Foto:nicy

terça-feira, 21 de abril de 2009

Um dia

Falarei das madrugadas famintas de luz
que se desprendem lentamente
em impulsos de fogo do ventre silencioso.

Falarei do tempo que se consome
nas pinceladas das telas não coloridas
que sobrepujam as frias águas do mar.

Falarei do peso exacto das horas sem luz
sem deixar cair ao chão
a luz das palavras exaustas.

Falarei do sarcasmo escondido no silêncio
esquizofrénico das árvores quando se desnudam
no Outono, por adivinharem calafrios na luz.

E falarei da brisa que vem do mar
e me retira luz à memória, a adelgaçar-se como
bandos de gaivotas a encolher no horizonte.

E, mesmo que na plateia estejam exclusivamente
térmitas e ácaros, um dia falarei de coisas simples,
com o olhar na luz que há nos tons da maresia.
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Foto:Wiltierna

terça-feira, 14 de abril de 2009

Procurar-te-ei



Procurar-te-ei
Em todos os rostos
Com quem me cruzar
Em todos os portos

De ilhas longínquas
Que nem vou aportar
Em todos os aeroportos
De cidades adormecidas

Que nem vou visitar
Em todas as estações
De todos os tempos que
Nem sequer por mim vão passar.

.
Procurar-te-ei
E quando te reencontrar
Sei que nos beijaremos
Como nos beijamos a primeira vez

Devagar
E que o tempo
Ficará parado e encarcerado em nós.

Procurar-te-ei ...

Foto:bushmenka

terça-feira, 7 de abril de 2009

O medo

Esta noite guardei um poema feito medo, feito faca, feito ventos sobre o mar, e sirenes que ecoam preguiçosas ao longe muito ao longe.
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E disserem-me que o medo era preto, e eu sei que o medo é branco, branco e frio com esta parede que esquadrinho e nada me diz.
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As minhas mãos sonâmbulas e noctívagas deambulam na obscuridade da noite e contornam trilhos impenetráveis de um corpo consumido pelo fogo.
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Esta noite guardei um poema num abrigo secreto onde só as estrelas têm acesso.
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E agora tudo repousa em fios de silêncios.
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Foto:aniawojszel