terça-feira, 31 de maio de 2011

Chamo por mim e não me oiço


Em memória de H.D.
Chamo por mim e não me oiço, já não tenho voz audível.

Imóvel, deitada sobre o silêncio da noite e da casa, tacteio no fundo das trevas e já não sinto nada.
Antes eu tinha sempre no côncavo das minhas mãos um sonho encoberto, para salvaguarda de quando já nada tivesse para sonhar, mas hoje as minhas mãos estão vazias, desapossadas de tudo, até de mim, apenas sou a sombra da outra eu que já não existe.
E, nas árvores, os frutos amadureceram e caíram desperdiçados no chão, da seca, da água que não caiu no inverno.
Imóvel, olho as colinas do silêncio enlaçado em nevoeiro como fiapos estilhaçados.
Ainda me resta a ternura branca e fina do vestido de organza suspenso no cabide do guarda memórias de mim – da outra eu – de outros tempos.
E, imóvel, vou amedrontada no nevoeiro que se entranha nas casas habitadas – poucas - do povoado....
Na ermida abandonada os sinos já tocam a rebate... mas não os oiço, tal como não me oiço a mim.
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Foto: absentia

terça-feira, 24 de maio de 2011

agarro

Agarro e bebo
A incerteza [ainda] da tua voz
Que me chega, cadenciada
E mergulhada em enigmas
Sem rumo certo
Sem advento aprazado
Erro à deriva num eco
Que se infiltra nos meus ouvidos
Que resiste à eterna ambiguidade
Duma sinfonia louca
E melodiosa
Que me desfia preguiçosa
Emitindo árias
A quererem derramar-se em mim
Arrebatadas
Na certeza [agora] da tua voz
Que agarro e bebo
.
Foto:kiki 123

terça-feira, 17 de maio de 2011

Na margem da nossa utopia


Na margem da nossa utopia
Construí uma cerca com muralhas de líquenes
E cogumelos selvagens e venenosos
Para afastar os possíveis visitantes
Sem convite para penetrar
Na margem do rio de águas soltas
.
Espalhei seixos para te indicar o caminho
Assinalei com um lenço cinza e verde
O esconderijo secreto para nós
E escolhi centelhas de luz para te ofertar
Com aromas de azuis
E nuances de cristais
.
A entoar um canto de sereias
Em completo desatino
Esperei-te nos declínios das tardes
Nas noites quentes
No ciclo das sucessivas estações
Nos dias oração
.
E quando chegaste estavas com pressa
Sem tempo para colheres a luz
Que eu te queria ofertar
Com a cegueira a toldar os teus olhos
Que olhavam sem vislumbrar
O meu encoberto desânimo
.
Mas num momento de desespero
Destruí tudo o que havia construído
Por isso, não precisas voltar
Porque já nada existe para além
Do nevoeiro latente que agora ensombra
As margens da minha utopia
.
Foto: Mitsus

terça-feira, 10 de maio de 2011

quando

Quando a noite emerge
No declínio da tarde moribunda
E o palco abre as suas cortinas
Chegas em delírio
Metamorfoseado de sons
E odores
Num cenário inventado
Em coreografia
De prazer inebriante

O palco é teu e na plateia
deserta
Só eu oiço o teu monólogo.


Foto:Mitsus

terça-feira, 3 de maio de 2011

este silêncio


Este silêncio moribundo
Entranhado na triste condição de ser mortal

Nas entrelinhas da tarde que antecede a noite
Leio o abraço nostálgico das sombras
Em centelhas de saudade
Na ilusão que arquitectamos no toque dos dedos
Enlaçada no tempo
Que julgávamos imperecível

Lá fora há luz e confiança
Há a Primavera imperturbável
No olhar das crianças
Que corre devagar
No declínio das memórias dos dias findos.
.
Foto: woreczek82