terça-feira, 29 de setembro de 2009

Parei


Não sei que trilhos me levam
Nesta caminhada sem término
Neste olhar burilado de incertezas

Não sei do mutismo das letras
Nem do brilho que ao longe se ocultou
Não sei se vejo e o que vejo

Ou o que omiti sem esquecer
Não quero desvendar nem palmilhar
Secretos sons disfarçados de palavras

Não posso mais, estou fatigada
Quero novamente despertar
Na calma do meu esconderijo

Ouvir o trinar dos pássaros
E sorrir até trucidar a distância
Envolta em ruídos íntimos.

Foto:Bryzeida

terça-feira, 22 de setembro de 2009

a fundo perdido

Sem sequer o entenderes,
acho que sempre foste meu.
E eu tua, quando as mãos se enlaçavam
e os corpos se fundiam através dos lábios,
rios que primeiro se encontravam
até se deitarem num único mar levantado.
.
A tua (nossa) rebeldia contagiante
era a chama que nos detonava.
E, amar em fogo perigoso,
era tudo ou somente o que nos restava
quando tanto mais havia para amar.
.
Sem o sabermos, foste meu.
E eu tua! Por querer,
renegávamos a partilha consumada,
mas ansiando a nova entrega, sem datas na luz
e sem variações inesperadas de marés.
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Se não te tenho, o tempo fica inquieto.
Invento quimeras no espaço por ti abandonado,
onde o odor almiscarado se demora,
enraizado, das mãos às narinas desprotegidas.
.
Nunca haverá correntes que te consigam prender.
Nem a mim, e eu jamais sentirei que és ou foste meu
(e eu tua).
Por isso, mesmo que nunca te sintas meu,
nem eu tua, nada importa,
se tudo faz parte
de um investimento a fundo perdido em nós.
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Foto: DonLarson

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Não me procures por aí


Não me procures por aí
(desertei da habitação dos sonhos)
Vivo nas catacumbas dos xistos
Esquecida nos esconderijos
Cobertos de poeiras moribundas.

Não me procures aqui
(escondi-me numa burca)
Não tenho rosto, nem rugas, nem sonhos
Levantei voo e perdi o meu norte
Em tempestades de areias.

Não me procures
(feneci no voo improvável)
Estarei aquém de ti
No olhar das gaivotas
E nas vagas do mar.
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Foto :- laik 170

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Um guião há muito escrito


De vez em quando ele subia aquela rua, como ele rústica, de calçada portuguesa. Trazia quase sempre umas botas castanhas, vestia um pólo e umas calças de ganga. Parecia tímido. Mas não era. Era apenas fruto da imaginação e isso bastava para que fosse real.
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Como uma adolescente, ela ficava deslumbrada e sonhava com os cavaleiros dos livros que lera na sua infância. Ele era então um cavaleiro, personagem feito realidade. E um novo livro imaginário ia sendo escrito, de contornos bem precisos, numa trama romanceada até à exaustão.
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Por vezes, ela revê todo o tempo aprisionado nas páginas daquela fantasia. Mas o tempo não se guarda, ele passa. Só as recordações ficam armazenadas, como se inscritas num disco rígido. E ela lembrava-se de tudo sempre que relia a narrativa que tão bem arquitectara.
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Podem roubar-se todos os sonhos. Mas não as recordações. Essas têm raízes, são árvores que ficam plantadas e não se roubam nem se deixam roubar, porque têm vida própria.
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Certo é que, naquele tempo, talvez nada fosse realizável. No entanto, ele foi o cavaleiro andante e ela a sua musa. Centenas de páginas de memórias abarcam ainda todas as imagens que o tempo não consegue apagar e, por isso, a ilusão permanece viva, enraizada.
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Passaram anos, meses, ou dias?! Talvez tudo isso. Ela não quer saber! Ela apenas sonha que um dia ele voltará a subir a calçada e lhe dirá: - Anda daí, vamos jantar e redescobrir a cidade…. E a cidade, tão percorrida, tão conhecida e tão velha, voltará a ser uma cidade nova, com recantos que nenhum dos dois conhece ainda. Nesse dia, serão personagens de um filme que será rodado de um guião há muito escrito.
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Foto:Rui Bonito

Um clik

Cedo ao tempo, o espaço oco que suspendo
na lassidão da emboscada supérflua
e deixo que ele me conquiste no seu torpor
silente .
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E assim escorrego, na alucinação
sem precisar pensar os fios do poente
a desfalecer no diafragma da objectiva.
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É insondável a beleza
Bruta
E repentina do momento.
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Cedo ao tempo, todas as fotos
ampliadas nos improvisos
anónimos e distraídos
estremecidos pelo ribombar de um
clik.

Foto:Shhana

terça-feira, 1 de setembro de 2009

há chamas adormecidas no sono dos violinos

há chamas adormecidas no sono
dos violinos.
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gemidos tangentes transbordam os sentidos
desordenados, e uma dissimulada melancolia,
dorme encoberta em finos silêncios.
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um dia, um incêndio
irá despertar o sono dos violinos,
numa transmutação de notas,
de alguma pauta abandonada.
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há cinzas espalhadas no acordar
dos violinos.
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.Foto:PabloRomano