terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

O Passaporte

Magdalena Russock

Já há muito tempo que este local em que vivo e que chamo de casa, já não me diz nada. Casa. É assim que lhe chamo pois embora já na seja muito agarrada às coisas, tenho por aí muita memória espalhada. Uma jarra quebrada que trouxe já nem me lembro de onde, um bocado de tecido garrido, que às vezes amarro os cabelos, algumas revistas e fotos antigas de jornais, em que ainda apareço, e livros os meus livros. Arrumo coisas dentro de coisas, caixas,potes, pratos, taças, e coisas inimagináveis para os mortais como eu.
Estou só, mas não vivo só. À noite sento-me na varanda que são umas tábuas corridas e falo com os cães que aparecem e os gatos. Há dias um gato enroscou-se no meu colo e amanheci deitada com frio e com o gato a fazer cama em mim. Às vezes os pássaros passam por aí, são cantadores e por vezes desafinados que ate me fazem dó, mas acabo a sorrir e a cantar cantigas que invento e canto  ainda mais desafinada do que eles.
 Às vezes procuro coisas que sei que tenho algures mas não sei onde as coloquei.
Outro dia lembrei-me do meu passaporte, cheguei a sonhar com ele, que tinha várias páginas, com as datas e respectivos carimbos pelos países por onde andei.
Outro dia que nem o sol deu ar de sua graça, não chovia, nem vi cães nem gatos nem sequer senti o vento a brincar com a folhagem.
Um dia sem nada a assinalar.Encontrei o passaporte muito bem guardado dentro de uma caixa velha de sapatos.
Mexi, remexi, olhei os carimbos as datas, e não me perguntem.
Abracei-me ao maldito passaporte totalmente desprotegida e chorei como nunca me lembro de alguma vez ter chorado assim.
Que diabo quer dizer, chorar abraçada a um passaporte!?.

Mas, ando taciturna a pensar nisso.


©Piedade Araújo Sol 2020-02-20

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Hieróglifo ou esquisso

amacio com a ponta dos dedos a textura do papel
o que será o meu desenho
que parecem apenas vários esquissos

mas..és algo que de tanto menear
e organizar, tem vida para mim
e oiço ecos muitas vezes
na sombra do sonho-desenho que me acompanha
desde pequena

será que se pode sonhar ou falar com cores
ou até sombras
ou será que nada disso existe
e que sou eu que invento cores
sombras e até músicas

não.  nada existe, quem anda perdida sou eu
nas formas irreais de um desenho que
não vou concluir nunca

será que só me resta um caminho
o  único
o  deslaço de tudo

no eco dos meus dedos ténues
e polvilhados de sal e tintas
a imitar sombras, cores e noite
e a trucidar insónias

(são ecos apenas que presentes,  são ausentes e amanhã serão apenas passado)

mas, que residem embaçados em mim…

©Piedade Araújo Sol 2020-02-16
Imagem: Joel Robison

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

por dentro das cortinas entrevejo o alvorecer



com o sol a espargir seus raios de luz e a inundar
a sala e a camada fina de poeira existente sobre a mesa

onde uma folha de papel branco garatujada
repousa sobre a secretária de carvalho já gasta

os raios a querer abraçar o texto 
escrito na insónia da noite, sem sono nem sonhos

mas eis que o dia banhando as palavras estendidas
fizeram sentido e perto da janela

os telhados das casas inundados de luz
pareciam sorrir com o calor morno e claro do dia

por vezes é nessa placitude que tudo se transmuta
o dia ganha vida,
e o poema renasce…

©Piedade Araújo Sol 2020-02-10
Imagem: Inês Rehberber

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

As cores


Abstrata de tudo
desatei por mim a pensar
de cor se pinta um abraço?

Pensei e achei
que talvez das cores do arco-íris

Mas, e o céu, quando carregado de chuva
que parece querer desabar sobre a terra
ressequida e sedenta.

Talvez de cor de chumbo

E que cor teriam 
os sonhos do poetas
que cor seria mais adequada.

Acho que seriam cor de mar
cor de sol
cor de romãs, mas,

não sei…talvez o vento saiba.

©Piedade Araújo Sol 2020-01-30
Imagem: Alex Stoddard