terça-feira, 24 de setembro de 2013

As pétalas que guardei para ti


Tresmalhadas as esperas,
os trilhos,
os olhares,
as mãos distraídas,
com as pétalas a tombarem
no chão desamparado,
aguardando a chegada
tardia,
apressada.

Esgotada
encolhida na indolência
do fogo reacendido,
onde ainda existiam faúlhas,
que nem a distância conseguia apagar.

Sentada aguarda o voo dos pássaros,
e o vento que vai levar,
as pétalas para outra margem.

© Piedade Araújo Sol 2013-09-23

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Reflexão



As horas passam e eu não dou por elas, estou aqui estendida sobre as
memórias recentes,
apenas a olhar o mar e fazendo uma catarse de conjunturas idas.
Ao longe, o ladrar de um cão tira-me o torpor em que me encontro.
Ajeito o corpo e vasculho nas profundezas
do meu eu, explicações para factos que são inexplicáveis.

Gosto de estar assim a olhar o mar e fazer conjecturas,
sobre tudo e sobre nada,
e se por vezes pareço oca,
talvez seja uma defesa que eu engendro
para que o vazio não se inviscere em mim e nos meus ossos.

Não vou entender o questionável, não sei ainda abrir
as portas que bloqueei,
existem portas que se fecham e que nunca mais se devem abrir,
e sinto que por vezes a terra roda em volta do meu eixo somente,
e não me deixa ver o que existe além do além de mim.

Mas o mar continua azul e, assim sendo,
amachuco languidamente todos as meditações,
e sinto que afinal estou viva,
o relógio deve marcar tão-somente a tarde em que o sol se põe
e que devo ter sonhado.

Algures, ainda existe algo ou alguma coisa que eu não retive em mim,
mas que me fará ressurgir,
e, tão só por isso, eu ergo a minha vontade
e suavemente deslizo para a tarde
e para a vida que se adivinha.

Não sei a rotação do tempo, nem das marés,
mas ainda vou a tempo de saber.

©Piedade Araújo Sol 2013-09-16
Foto shawrus

domingo, 15 de setembro de 2013

O beijo com sabor a mirtilo

Maurice De Vries

"Ela não se surpreendeu quando ele a beijou, e os lábios dele tinham o sabor a mirtilos".
© Piedade Araújo Sol

Ou então seria ela que gostava tanto de mirtilos e havia desejado tanto os lábios dele.
Quando os lábios dele chegaram ela já não os esperava. O verão havia feito a sua despedida tímida.
A normalidade instalara-se na sua vida demasiado normal. E tudo avançava acanhadamente: o tempo, ela e a vida.
Ele chegou numa manhã de domingo.
De um domingo particularmente sombrio. A campainha soou numa só toada. E ela estremecer. Ela estremecia poucas vezes. Era uma mulher segura. Mas sim, o seu corpo parou. E os sinais de alarme, internos, que ela tão bem reconhecia, apareceram, jocosos e repentinos, atirando-a para um estado de alerta e perturbações iminente.
Abriu a porta com um vagar propositado. As palavras aos tropeções no coração, o coração embrulhado na barriga, o sangue doido a correr nas autoestradas das veias.
Ele estava lá, atrás da porta. E ela estava lá, diante dele. Os olhos dele conversaram muito tempo. As palavras formaram uma fila ordeira. O sangue sossegou.
Ele não disse nada. Ele não era de dizer muita coisa. Avançou um passo, enlaçou-a pela cintura e deu-lhe um beijo.
Um beijo com sabor a mirtilos.
Um beijo atrasado,
Mas um beijo que ela esperou a vida inteira."

Autor : Laura Ferreira http://pi-lau.blogspot.pt/

O texto é da Laura Ferreira, e faz parte de um desafio em que eu apenas dei  mote.


terça-feira, 10 de setembro de 2013

Laura

Christian Schloe
                    
"havia dias em que ela era pequena assim como havia dias em que era grande."
Laura Ferreira.

Quando se sentia grande, prolongava-se a olhar o mar e circulava pela orla da praia como se fosse uma ciranda.

Um dia, ainda muito pequenina e quando cheia de sede sorveu um gole da água do mar e o sabor a acossou, deixou de comer comida com sal, mas nunca deixou de beber o mar, e falar com as areias.

Talvez nada havia naquela praia que fosse relevante, mas, ela achava que sim e era nesses momentos que se sentia grande, quando com a sua própria sombra fazia a sua figura reflectida pelo sol.

Chegou a tirar fotos e a admirar-se como se fosse aquelas top models que vinham escarrapachadas nas revistas cor-de-rosa.

Depois de uma noite de verão em que inusitadamente chovera, achou que estava pequena, assim como as gotículas que se formaram de manhã na vidraça .

Nunca entendera muito bem essas mudanças repentinas da atmosfera, mas nesses momentos, ela fugia para a praça inundada de plátanos e toava o caminho da praia quando a noite se anunciava.

E olhava para a lua, e falava para a lua, que embora não necessitasse de palavras, estava ali e não contradizia nem sequer ralhava.Por vezes uma nuvem toldava-lhe a visão, e nesses momentos então sabia que o dia seguinte ia ser de borrasca, e que só voltaria a se sentir grande quando o sol aflorasse novamente no céu.

©Piedade Araújo Sol 2013-09-05

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Prisioneira, ou tão-somente “A Fugitiva dos Relâmpagos”


Noell S. Oszvald


Cativa do vazio que lhe transbordava a alma, as interpelações, quedavam-se a pairar no ar, sem réplicas nem tão pouco elucidações se as houvesse.

Dissimulava muitas vezes a realidade. Era mais cômodo, e não aguilhoava tanto.

Administrava os pressentimentos, e por vezes tentava mover as pedras que dispunha como se fossem dados num jogo viciado e que não se conhece nada, absolutamente nada e para o qual nunca estaremos, meramente preparados.

Mas ela fazia parte do jogo e sem ela o jogo não podia prosseguir.

Não fossem esses estados de alma, por vezes catatónicos e já tinha ido voar com os pássaros além-mar.

Numa noite inusitada de verão em que ribombaram relâmpagos, ela desapareceu.

E os velhos da aldeia, juraram, que no dia seguinte viram-na libertada de grilhetas a voar com os pássaros.

E aquele local da aldeia, ainda hoje é conhecido pelo lugar da “fugitiva dos relâmpagos”

©Piedade Araújo Sol 2013-08-31