segunda-feira, 29 de dezembro de 2003

A recordação

Afasto a recordação, com raiva, como quem apaga um cigarro com violência num fundo de um cinzeiro.
É tão simples como isso, penso. Assim como quem retira um número de telefone do arquivo do telemóvel, ou um documento dum ficheiro qualquer.
Pronto. Já está! Acabou. Penso! A vida continua.
Mas não! A recordação não foi, ficou, assim um pouco mais enevoada, mas ficou.
E eu vejo-me novamente a gozar as minhas férias de verão no Algarve naquele mês quente de Agosto, e vejo-a, com os seus cabelos louros ao vento. Engraçado, quando a conheci, fazia uma leve aragem que lhe fazia com que os cabelos estivessem sempre a tapar-lhe os olhos e com que ela, com um gesto enérgico, estivesse sempre a afastá-los da cara.
Ela era linda! Meu Deus, quantas vezes a vejo nos meus sonhos. Quantas vezes a revejo nas minhas noite de insónia. Mas, ela foi embora, e como os amores de verão, ficou para sempre enterrado nas areias. Ficou? Se ficou, porque me lembro tanto dela? Porque esta angústia que me dilacera o coração?
Porque é que em cada mulher loura eu vejo um pouco do seu andar, do seu sorriso da sua maneira de falar e rir, um pouco do seu corpo?
Não sei, as perguntas formam um emaranhado de contradições e nem eu próprio as consigo decifrar. Será que estou a ficar paranóico. Tinha piada. Ir ao psiquiatra, deitar-me num divã a contar as minhas coisas. Porque será que imagino que no psiquiatra as pessoas se deitam num divã? È o que vejo em filmes. Não sei. Nunca fui a nenhum.
Estou para aqui a divagar. Tenho frio. Não é um frio físico, é mais, digamos, espiritual. Isso existe? Não sei. Gostava de saber se ela também me enterrou nas suas recordações, mas não sei, talvez nunca o vá saber. Não tenho coragem, não quero saber a resposta. Não tenho medo das perguntas, tenho sim medo das respostas. Às vezes é melhor a incerteza do que a certeza da verdade.
Vou fumar um cigarro...estes cigarros estão a dar cabo de mim… até dores de cabeça já sinto. Mas se não fumar acho que ainda é pior. Merda, vou fumar um cigarro, um só. Até a fumar me lembro dela. Ela aspirava o cigarro como quem queria sorver o mundo num momento, com fúria, e depois ficava a fazer baforadas de fumo e a olhar para elas como se fossem coisas ou pessoas, ficava assim como que absorta. E depois ria, ria muito, com um riso tão contagiante que chegava a enervar-me. Ela parecia tão frágil.E era tão forte. Um rochedo que eu tento me libertar e onde as escarpas do mesmo se agarram como se tivessem tentáculos como um polvo.
Vou fumar mais um cigarro, só mais um...

© Piedade Araújo Sol  (Dezembro 2003)



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sábado, 13 de dezembro de 2003

Do amor proibido

Ignoramos
e ambos sofremos
e ambos amamos
como se pudéssemos
mudar o rumo dos acontecimentos
era proibido
e ambos sabíamos

Tu nunca saberás
que todos os dias
à mesma hora que telefonavas
eu oiço a “nossa” música
porque sei que nunca mais
vais voltar a faze-lo
e eu não mais ouvirei a tua voz

Tu nunca saberás
que em dias alternados
mas sempre no mesmo dia da semana
eu sento na mesma mesa
no mesmo café
e sei que tu nunca mais vais aparecer

Tu nunca saberás
que eu releio as tuas poesias
embora as saiba de cor
porque sei que tu nunca mais
irás pegar num simples lápis
e me escrever uma que seja

Tu nunca saberás
que eu sei que tu não sabes
mas que eu sempre soube
que tudo era falso e vão
que da tua parte
eu não passei dum devaneio

Tu nunca saberás
que eu choro nas minhas
noites vazias
e que relembro
cada gesto
Cada palavra
cada sorriso

Tu nunca saberás
que no amor
tudo é possível
tudo pode ser permitido
tudo pode ser compartilhado
tudo pode ser amado
e para ti tudo era proibido

Tu nunca saberás
que nada se esfumou
na minha lembrança
e que para tudo
teria de haver uma solução
e eu sei que tu nunca
quiseste sequer encontrar
essa saída

Do amor proibido
do nosso amor proibido
que não foi
que não esqueceu
que magoou
que continua a magoar

Tu nunca saberás...