terça-feira, 29 de maio de 2012

Não sei quando



Não sei quando nem como surgiste na minha vida.
Ou talvez o saiba, sem o saber ou por não o querer saber para não o relembrar.
Mas aconteceste, assim como que do nada, e entraste na minha vida sem sequer te fazeres anunciado. Eu não esperava e, por isso, ainda hoje me surpreendo. Trouxeste-me enternecimento e aconchego a um coração entorpecido, mas também trouxeste a raiva disfarçada em palavras, por vezes em silêncios indisfarçáveis. Trouxeste o medo. O desejo. Os segredos. E eu nunca soube lidar com tudo isso nem gerir os sentimentos antagónicos que me assolavam.
E um dia, tal como chegaste, saíste. Sem aviso, sem despedidas e sem palavras, apenas e só silêncios.
A partir daí, todos os dias passaram a ser nebulosos. O medo ganhou formas desproporcionadas e fiquei a desfolhar os dias como se fossem contas de um rosário que nunca tive.
Apetecia-me dizer-te que não sabia nem queria gerir este caos que me assolava, mas tu já não estavas.
No meu quarto, eu revia e inventava palavras e mais palavras, máculas caindo no chão, na porta cerrada, no telefone desligado.
E sei que lá fora existem casas e luzes. E, ao descer a rua, sei que existem os barcos parados na praia. Mesmo sem o querer, é sempre para lá que vou, muito embora nem a maresia perceba este caos que ainda não dissolvi em mim.

© Piedade Araújo Sol  2012-05-29
 Foto :  maszu

terça-feira, 22 de maio de 2012

quimeras



num espaço inóspito, junto à areia, invento-me
em quimeras de ti e sonho-te junto ao mar de águas calmas
que se agitam, ao sabor da aragem que serpenteia a tarde
e lança esquiços de algas e búzios para a praia.

não há sombras em desalinho, ou frio sequer,
no dia que se acaba, lânguido e cheio de sabores,
na mansidão calma dos olhares meus
na espuma que as ondas osculam a areia ainda quente.

invento-me em ti e, na perturbação da tarde
chegam fragrâncias inconfundíveis de decifrar
 que me abandonam em crescente volúpia.

no voo das gaivotas, invento-me e vou com elas
desprotegida, sem rumo e sem destino,
no desvario de ser apenas e só uma utopia com asas.


© Piedade Araújo Sol 2012-05-22




terça-feira, 15 de maio de 2012

O Poema

Para L. M.

O poema pode nascer nos teus olhos, sem que tivesses feito nada por isso.
Um sorriso apenas e o poema salta para o papel, voa e ganha asas pelas planícies de um lugar em silêncio na retina dos teus olhos.
Galga fronteiras como se fosse um cavalo alado, a galopar nas asas secretas da tua imaginação prenhe de acasos.
O poema nasce em ti e nos dedos esquivos, que se tornam dóceis que escrevem palavras que dedilhas como se fossem renda de bilros que um dia viste nas cortinas da casa da tua avó.
Sabes que um dia os lançaras ao fogo e que serão devorados pelas chamas sequiosas, como se fossem elas, abutres em redor de carne putrefacta.
Um dia apenas a memória tecerá em ti memórias (outras) de um poema que ninguém leu e que o fogo devorou.
Um dia que pode ser já hoje!
.

© Piedade Araújo Sol 2012-05-15
Foto : Agniesszka Uziębło

terça-feira, 8 de maio de 2012

Sei que és


Sei que és
Tão forte como um touro
E que, nem um tufão
Te fará vergar ou cair
Pois terias um escudo protector
Escondido em ti.

Fico a congeminar se terás sido
Tonificado por algum meteoro
Que num dia sem ninguém se aperceber
Caiu num lugar despovoado
Dalguma praia inacessível.

Ah ser tu, sem mim
Ah a distancia das areias
E a água do oceano
Que se banha sem nós
E nos lava as quimeras
Salgadas e melosas.

Mas a tua áurea
Será a luz que me ilumina
E me dá alento
Para que a minha boca
Saboreio o beijo das
Bocas famintas de alvoradas

E o caos em nós.

© Piedade Araújo Sol 2012-05-08

terça-feira, 1 de maio de 2012

No limiar solto das palavras


No limiar solto das palavras, encerro por vezes
o desejo que me cai em cascata pelo
corpo, como labareda a
inflamar a garganta, que se torna seca,
e sem ar.

Na exiguidade concisa de um sonho (rubro e indizível),
em evidentes sinais de ternura
no beijo que as nossas bocas partilham, resisto
como se as nascentes, virgens, conduzissem as
águas apenas – e só – para o mar.

E quando te vejo em cada nuvem, que por vezes
entenebrece o horizonte, e o meu hálito
faz círculos na janela, o ar que ainda respiro
mantém-se encarcerado no silêncio
das manhãs acinzentadas.

Penso que um dia – muito próximo
pego nas minhas palavras e ponho-as a dormir contigo
espalhadas pela cama, como se fossem framboesas maduras
e ainda  virgens…
.

© Piedade Araújo Sol 2012-05-01