terça-feira, 24 de junho de 2008

des_acordo ortográfico


na solidão das palavras
na fome dos vocábulos
na sede que nos mata…
eu fico envolvida pelas sílabas
e entoo a musica
em toadas sem ritmo
à espera de inventar
palavras fechadas nas vogais...

mata-me esta renúncia de letras
cartas geográficas confusas
onde jazem mapas
imprecisos
dentro de armários baralhados
onde guardamos factos e fatos
no lado terno das nossas lembranças.

recuso-me esquecer as letras que
querem arrancar dessa ortografia nossa
que quero virgem.

recuso-me a comer letras
que não sejam as da sopa…

estou em greve de acordos ortográficos
recuso-me simplesmente.


.

Foto: Nicolas7

terça-feira, 17 de junho de 2008

Dói-me este estar aqui

Dói-me este estar aqui
Pendurada nas palavras que não escuto
Num olhar onde não me revejo
Esqueci as frases, as palavras, os gestos
Perdi o assunto, cedi ao vazio da memória
Já o previa? Justifico-me?
.
E agora que faço eu aqui
Se nada fixei
Se nada mais recordo
Se já nem mesmo sei
Por que estou aqui
.
Dói-me este estar aqui
Com as palavras esbatidas no fundo de mim
Numa aridez de verbos e conjugações neutras
Que me sufocam lentamente
O meu corpo é apenas povoado de escombros
De uma casa velha desabitada.
.
Dói-me este estar aqui
Sem ti.
.
Foto:Ira Bordo

terça-feira, 10 de junho de 2008

Naquela tarde


Naquela tarde, em que a tarde não existiu,
Relembro todos os teus cheiros derramados em mim
Embriagados numa ária de movimentos
E sonância que eu própria
Executei.
Lá fora existia o que ainda hoje permanece
E eu não o senti.
.
Naquela tarde
Éramos nós
E mais nada nem ninguém existia
Além disso,
Nem o frio lá fora
Nem a fome por dentro de nós
Sobrevivia.
.
Naquela tarde
Fomos desejo esfaimado
Fomos cúmplices em deleite
Onde a tua própria sombra
Em chamas incendiava
Meu corpo desfalecido
Mas saciado.
.
Naquela tarde...
.
Foto:Marta Ferreira

terça-feira, 3 de junho de 2008

desiderato

Seguras, nas tuas mãos, um archote que vacila.
E, no entanto,
a noite está calma.
No rosto, nem uma leve brisa nos beija.
.
Na imortalidade das horas, eu sei que
não conseguirei preservar a luz
que se liberta do archote que tens nas as tuas mãos.
Apenas e só as águas reflectirão
os vultos dos amantes que ainda somos.
.
Escuta comigo o bater desordenado do meu coração.
Sente, como eu sinto,
o fogo violento das palavras encerradas no poema.
Sente a música do mar e vem pintar o fogo
do canto soletrado nas minhas chamas extenuadas,
vem pintar o clarão quase extinto
da agitação das mãos que te procuram,
das mãos atordoadas à luz do teu archote em extinção.
.
A luz extinguiu-se, quando a lua,
definitiva, rompeu as nuvens densas da noite,
ofuscando o nosso archote de vez.
Mas, doravante, será o luar a beijar o mar
da nossa pureza, num poema
de luz aquietada que nos fará esquecer o archote ….