sexta-feira, 14 de maio de 2004

O Livro CONTOS ESPARSOS TOXICODEPENDÊNCIA

Sou um livro de capa verde com uma aparência vulgar. Estou para aqui empilhado, ao acaso, numa estante de madeira castanha envernizada, duma livraria a que o público tem acesso. E aqui estou, dia após dia, à espera que alguém me leia.
Ontem esteve cá uma moça que me folheou, manteve-se atenta e leu uma parte. Pareceu-me ávida de conhecimentos, mas voltou a colocar-me na estante e retirou-se. Fiquei triste, pensei que ela ia levar-me. Faço tão boa companhia e posso ser tão útil! Mas não! Qualquer coisa a fez retrair. Eu bem sei que não sou um brinquedo nem um romance célebre. Mas conto histórias sentidas, verdadeiras, escritas com tinta de sangue. São histórias vividas por comuns homens e mulheres que sentiram e amaram, e que lutaram dias a fio contra qualquer coisa que sub-repticiamente lhes minou a vontade e a alma.
Eu sei que o meu título não é convidativo, não é alegre, mas também sei que posso fazer bem a muita gente. Eu existo para ser lido, para que não morram tantas vidas amassadas em sangue vivo, em vão, para que outras vidas possam beneficiar da experiência que eu trago à luz do dia. Sou um livro que conta histórias sobre drogas. Como é fácil entrar nesse mundo e quão difícil é sair dele. São várias, são casos verídicos, testemunhados pelo seu autor. Narram episódios tristes e verdadeiros.
Sei que sou um livro, mas transmito sentimentos como se um ser vivo fosse. E senti que a moça que me pegou ontem, quando leu alguma das minhas narrativas, e depois de me voltar a colocar na prateleira, deixou deslizar suavemente pelas suas faces uma lágrima triste e sentida,
Ela leu “A viagem sem retorno” Fala da vida da Mariana. Quando ela se divorciou, a pressão foi tão forte, a desilusão tão grande que, para minorar essa dor e tentar esquecer, ela foi fazer voluntariado para uma associação de toxicodependentes no Porto. Queria sentir-se útil e assim poder ajudar a minorar a amargura dessas vidas ceifadas prematuramente por um vício terrível que é a droga.
Foi lá que conheceu o Mário, um toxicodependente portador de HIV mas em franca recuperação. Não sabe como nem quando. Todavia, quando se deu conta, estavam os dois completamente apaixonados. Uma paixão louca, avassaladora, daquelas que só acontecem uma vez na vida; uma paixão que não olhou a barreiras, riscos ou prudência. Ela ficou grávida e tiveram um filho em comum.
O Pedro era um miúdo lindo, com uma agilidade tão traquina e ao mesmo tempo tão dócil, pelo que ela nunca se sentira tão feliz. O Mário parecia tão alegre. Pensava ter ganho uma batalha.
Uma noite ele não apareceu em casa. Não telefonou. Não avisou. A noite exasperante, quase cruel no seu ritmo inexorável, custou tanto a passar. No dia seguinte ela procurou-o mas não o encontrou. Ao cair da noite, completamente desesperada, e depois de palmilhar quase todos os bairros, foi encontrá-lo para os lados das Torres do Aleixo, injectando-se acompanhado de uma outra moça dentro do carro que era deles.
Ele tinha voltado ao vício. Ela lutou, quase que o conseguiu demover. Quando ele se ia abaixo mudava de local, viveu em Gaia, Vila do Conde, em Ermesinde. Ele chegou a trocar as poucas jóias que ela possuía por heroína, cocaína ou outra qualquer substância narcótica. Um dia nem o relógio, a única recordação que tinha do pai, escapou.
Nesse dia Mariana não aguentou, disse Basta! Agarrou no Pedro e regressou ao Porto. Ele nunca se interessou em ver o filho. Quando Mariana levava o Pedro para ver o pai, ele nem queria que o miúdo se chegasse perto, tinha medo. Como estava muito debilitado, achava que o filho o iria magoar, quando o miúdo começava nas suas travessuras. Ficou num estado débil, depressivo, mas nunca largou o vício.
Há pouco tempo foi encontrado inanimado, e acabou por morrer, não de HIV mas de uma overdose.
A Mariana não chora, não sente nada, algo morreu dentro dela. Morreu um pouco todos os dias. Olha para o Pedro e só ele lhe dá uma centelha de alegria e um motivo para viver. A Mariana só queria ser feliz...
Sou um livro de capa verde aqui esquecido nesta prateleira. Acho que nunca ninguém me irá levar para ler…

(Factos verídicos: os nomes dos personagens foram alterados.)