terça-feira, 30 de outubro de 2018

Mensagem


Hoje estou feliz
recolho as pétalas
que caíram
das roseiras
e recatadamente
espalho-as
sobre o piso
formando um tapete
para que não magoes
teus pés
aos transpores
a porta da entrada.


©Piedade Araújo Sol 2005-10-15

terça-feira, 23 de outubro de 2018

não sei porquê

Nishe photography

não sei porquê
mas ainda amanheço com vestígios de pétalas

de flores silvestres nas mãos

nos olhos

nos poros

talvez o cheiro do teu corpo
ainda e sempre inesperado
esteja entranhado em mim naturalmente


o tempo passa
e com ele as lembranças
tendem a ficar desbotadas e sem cor

como algo que eu não sei explicar
e que deixou estas cicatrizes em mim doces
esta melancolia tatuada em pensamentos
com a vertigem da queda lenta aprazível
com o abismo do tempo distante tão perto

talvez eu queira reter algo de ti nas voltas das noites
até todos os amanheceres
e assim começar os dias com os teus sinais
e com a primavera que outrora nos habitou
 


a verdade é que todo o meu corpo arde
e as pétalas
viçosas e frescas que me lembram o teu cheiro
estão sempre a sorrirem por ti
para mim
presentes e espantadas
em mim


© Piedade Araújo Sol 2012-10-09

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Os beijos nus



Choveu durante todo o dia.
Tu dizias que os dias de chuva podiam ser tão bons como os dias de sol, bastava apenas estar com a companhia certa….e eu concordei contigo.
É verdade!
Quando chove lembro sempre de palavras envoltas em silêncios. Relembrar o meu olhar para o telhado e ver a chuva a cair, e apenas sentir o cheiro da pele. A tua! A minha! A nossa.
Suturo fragmentos de cheiros e construo mapas na minha cabeça.
Mapas sem coordenadas, sem rotas, apenas cheiros, sensações que emergem em dias de chuva.
E chegam sussurros no seio da chuva e no silêncio de mim.
E recolho os resquícios
Das lembranças dispersas apetece-me
Vestir a chuva
Com beijos
Mas eu dizia que os beijos eram sempre nus
E tu rias
E eu dizia que precisava
De vestir os meus com os teus beijos.

©Piedade Araújo Sol 2015-10-11

terça-feira, 9 de outubro de 2018

O Sonho


Leah Johnston
Há quem pense
Que o sonho é apenas uma ilusão
Que nasce durante a noite
E morre ao amanhecer

Mas eu sei que o sonho
Pode ser uma realidade
Que trago comigo ao acordar

E asfixio ao nascer do anoitecer

E se acham que o sonho
Morre com o poeta, eu digo
Que o poeta nunca morre
Porque o sonho com ele apenas repousa

Mas, ainda assim, eu penso que o sonho
Faz parte da saudade
Que o poeta deixou a navegar
Na imensidão do mar.

© Piedade Araújo Sol 2009-10-06

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Não sei quem sou


Nada se dilui no pardacento da tarde. É quase noite em mim. Não me lembro das manhãs. Muito menos das madrugadas mais longínquas no meu corpo. Olho-me no céu. Parece que vai chover. As terras estão secas como eu. Há tantos dias que os meteorologistas anunciam a chuva. Mas do céu não cai uma gota sequer. E eu a precisar do gosto da chuva no meu corpo. As terras estão ressequidas. Esquecidas de Deus. Que também se esqueceu de nós. Os velhos dizem que é a maior seca dos últimos trinta anos. Eu não sei há quantos anos dura a minha estiagem. Nem tenho ainda essa idade. Ou será que tenho…?!

Já não sei nada de nada. Às vezes gostava de saber os tempos dos velhos da aldeia. O tempo das sementeiras. O tempo para plantar as batatas no pedaço de terra ideal. O tempo das cebolas e por aí adiante. Gostava de saber os meus tempos. Das sementes que a minha terra não vê plantadas. Os meus campos enjeitados. A casa de pedra vazia de sonhos. O poço sem água. Os jardins sem flores. As trepadeiras retorcidas. Exauridas em abraços de morte a paralisar o corrimão. Tudo vazio de sons. De mim e de todos nós. Desfaleço como as paredes da casa que contam histórias a ninguém. Já não estamos lá. Nem os velhos para dizer o tempo.

Olho o céu. Talvez chova. É noite em mim. Deito-me diluída na cama.Na posição fetal. A madeira é demasiado sólida para este corpo quebrado e mirrado . Observo alheada a parede pintada a cal branca do quarto. Eu, trepadeira retorcida na chuva que não cai. As paredes cheias de nada. Não sei por que me deito nesta cama. Onde não durmo. Tantas noites em branco na parede branca que me espreita com um desgosto negro. Este corpo que se deita nesta ou noutra cama. Nesta ou noutra parede.Neste ou noutro País. Não é o meu corpo. É mais um corpo. Não sei de quem é. Os velhos dizem que perdi a memória. Talvez seja verdade! Talvez seja por isso que já não sei quem sou...

©Piedade Araújo Sol 2008/03/17