terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

As galochas amarelas


Há muitos anos, a minha mãe ofereceu-me
umas galochas amarelas – eram lindas.
Usava-as quando chovia,
com meias brancas de corações encarnados.

Nessa altura, desenhava em tudo o que encontrava
e refugiava-me nas águas-furtadas
com o meu amigo imaginário,
a quem chamei Set.

Sobre a mesa onde estudava,
um desenho dele pendia da parede,
e conversávamos
coisas que só ele entendia.
Embora imaginário, era real para mim.

Um dia, pensei que também precisaria de galochas.
Pedi outras à minha mãe.
Ela, astuta, perguntou porquê.
Fiz birra – queria umas pretas.

Ganhei-as.
Coloquei-as ao lado do desenho.
Nunca as calcei. Eram do Set.
A mãe, sempre atarefada,
nunca descobriu o meu segredo.

Nunca soube do Set.

Autor  © Piedade Araújo Sol 2025-02-24
Imagem : Jessica Drossin

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terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Não sei se voltaremos a falar

Não sei se voltaremos a falar
de assuntos profundos
ou meras trivialidades,
como o tempo antes da chuva
ou o sol que banha o teu cabelo.

Não sei se regresso ao tempo nosso
ou me entrego ao recolhimento,
obedecendo ao silêncio
como a um voto de sacrifício
ou a um orgulho supérfluo,

onde os pensamentos se contestam
e a memória se fragmenta
em sombras errantes—
tempestades ou insónias.

O meu olhar não se esvazia:
todos os dias ensaia a morte do dia
e o renascer no poente;
todos os dias ressuscita com as manhãs.

E para todo o sempre, este nó—
de verbos, pronomes e sílabas—
sufocado na garganta,
com o teu nome
preso debaixo da língua.

Não sei se voltaremos a falar.

© Piedade Araújo Sol  2025-02-17
Imagem :Anka Zhuravleva 

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terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Horizonte de Nuvens

 

Pesam-me os dias cinzentos,
embora nem sempre possam ser azuis.
Examino, nesses momentos,
o tempo que, energicamente,
segue seu destino como um legado.

Por vezes, ando distraída
e fico a olhar o vazio,
estendido sobre o dia
que forja o mistério
no horizonte mesclado de nuvens.

Mas ouço o eco do tempo,
não perco a sua simetria.
Reúno os sonhos que ainda tenho
como um novelo de nuvens.

Com o meu olhar,
levo-os para onde voam os pássaros
e sigo no rumo deles,
para conquistar os azuis
que ainda me sobram.

© Piedade Araújo Sol 2025-02-10
Imagem : Maria Kaimaki

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terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Caminhos da Esperança

Por entre trilhos que tracei,
corri ___ além da pressa,
tropecei ___ nos desvios,
e, desamparada, tantas vezes caí.

No coração do caos,
ainda pulsa a coragem.
A resiliência dança connosco —
caímos e nos erguemos, ___ sempre.

Se o tempo nos desafia,
driblamos sua pressa.
Cantamos sob ventos rebeldes,
sorrimos onde lágrimas aspiravam viver.

Há mágoas no ocaso, sim,
mas a cada amanhecer
bordamos cores na trama da vida,
fazendo-a vibrar sem intervalos.

E que os sonhos prevaleçam,
hoje e amanhã,
pois, mesmo sabendo que são ilusão,
eles iluminam o milagre
de estarmos aqui—abençoados pela vida.

©Piedade Araújo Sol 2025-02-03
Imagem ; ILya Kisaradov

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