É tarde.Olho o relógio de pulso, são 23 horas e 45 minutos. Meto a chave e abro a porta de casa. Atiro os sapatos com irascibilidade para o chão, e peça a peça a roupa cai sobre a cadeira estofada em veludo azul, que se encontra no meu quarto de dormir.
Tenho fome mas não me apetece ingerir qualquer alimento. Só de pensar em comida o estômago parece que se enrola. Acho que estou a ficar anoréctica. Vou à casa de banho e peso-me. Tenho menos 6 kg. Olho-me ao espelho e nem me identifico. Vejo uma loura esquelética. Sinto-me triste e só.
Estou numa casa enorme, tão enorme e tão fria de afecto. A gata entra precipitada e sobe para a cama desfeita da noite anterior. A cama fria, tão grande quanto fria. Aliso os lençóis, nem sei porque lhe quero dar um ar de conforto se nada me conforta já.
Estou fatigada, o dia foi extremamente extenuante, mas fértil em dividendos, nunca tive uma situação financeira tão desafogada. Tenho tudo, e no entanto nada tenho.
Num impulso, quase involuntário, pego no telemóvel e disco o número dele, ligo. Ele atende de imediato, nem me reconheço, mas é a minha voz que implora.
-António volta para casa.
E oiço do outro lado o que não quero, e sabia que poderia ouvir.
-Cristina, essa já não é a nossa casa é a tua.
Balbucio palavras incoerentes.
-Amanhã vou para Bruxelas, tira uns dias e vem comigo.
E volto a ouvir do outro lado a voz dele, pausada, segura, cortante.
-Cristina tu escolheste! Eu já não faço parte do teu mundo.
Tento argumentar, mas ele desliga.
Abro a mala e tiro a passagem, verifico a data. Tenho de arrumar as coisas que vou levar.
Amanhã sigo para Bruxelas, tenho uma maratona de reuniões marcadas e previamente estudadas, até ao último pormenor.
Sorrirei com o meu melhor sorriso, mas diligente e frígida como o gelo, tentarei levar a bom término todos os objectivos que ali me levam.
Tiro a mala do roupeiro, e meticulosamente arrumo os meus fatos de executiva, separo os sapatos a condizer com as roupas, tiro do armário da casa de banho os meus batons, os perfumes os cremes e arrumo-os no necessaire.
As lágrimas caem-me em catadupa. Tenho medo de não conseguir parar de chorar. Olho a minha mão esquerda. Porque diabo ainda uso a aliança?Tiro-a e coloco-a no guarda-jóias, mas faz-me falta no dedo e volto a colocá-la.
Tenho tudo o que sempre quis e pelo qual lutei, e afinal tudo se resume a nada.
Ponho um CD, em alto som e tento acompanhar a cantora, canto, canto e meu canto se desfaz pela noite dentro, meu canto transformado em grito, que ninguém ouvirá ecoa abafado ao som da voz da canção ....
-António...
Atiro-me para cima da cama…
Tenho de dormir…
Amanhã vou para Bruxelas…