O Passaporte
Magdalena Russock
Já há muito tempo que este local
em que vivo e que chamo de casa, já não me diz nada. Casa. É assim que lhe chamo
pois embora já na seja muito agarrada às coisas, tenho por aí muita memória
espalhada. Uma jarra quebrada que trouxe já nem me lembro de onde, um bocado de
tecido garrido, que às vezes amarro os cabelos, algumas revistas e fotos
antigas de jornais, em que ainda apareço, e livros os meus livros. Arrumo
coisas dentro de coisas, caixas,potes, pratos, taças, e coisas inimagináveis
para os mortais como eu.
Estou só, mas não vivo só. À noite sento-me na varanda que são umas tábuas
corridas e falo com os cães que aparecem e os gatos. Há dias um gato enroscou-se
no meu colo e amanheci deitada com frio e com o gato a fazer cama em mim. Às
vezes os pássaros passam por aí, são cantadores e por vezes desafinados que ate
me fazem dó, mas acabo a sorrir e a cantar cantigas que invento e canto ainda mais desafinada do que eles.
Às vezes
procuro coisas que sei que tenho algures mas não sei onde as coloquei.
Outro dia lembrei-me do meu
passaporte, cheguei a sonhar com ele, que tinha várias páginas, com as datas e
respectivos carimbos pelos países por onde andei.
Outro dia que nem o sol deu ar de
sua graça, não chovia, nem vi cães nem gatos nem sequer senti o vento a brincar
com a folhagem.
Um dia sem nada a assinalar.Encontrei o passaporte muito bem guardado
dentro de uma caixa velha de sapatos.
Mexi, remexi, olhei os carimbos
as datas, e não me perguntem.
Abracei-me ao maldito passaporte
totalmente desprotegida e chorei como nunca me lembro de alguma vez ter chorado
assim.
Que diabo quer dizer, chorar
abraçada a um passaporte!?.
Mas, ando taciturna a pensar
nisso.
©Piedade Araújo Sol 2020-02-20