A recordação
Afasto a recordação, com raiva, como quem apaga um cigarro com violência num fundo de um cinzeiro.
É tão simples como isso, penso. Assim como quem retira um número de telefone do arquivo do telemóvel, ou um documento dum ficheiro qualquer.
Pronto. Já está! Acabou. Penso! A vida continua.
Mas não! A recordação não foi, ficou, assim um pouco mais enevoada, mas ficou.
E eu vejo-me novamente a gozar as minhas férias de verão no Algarve naquele mês quente de Agosto, e vejo-a, com os seus cabelos louros ao vento. Engraçado, quando a conheci, fazia uma leve aragem que lhe fazia com que os cabelos estivessem sempre a tapar-lhe os olhos e com que ela, com um gesto enérgico, estivesse sempre a afastá-los da cara.
Ela era linda! Meu Deus, quantas vezes a vejo nos meus sonhos. Quantas vezes a revejo nas minhas noite de insónia. Mas, ela foi embora, e como os amores de verão, ficou para sempre enterrado nas areias. Ficou? Se ficou, porque me lembro tanto dela? Porque esta angústia que me dilacera o coração?
Porque é que em cada mulher loura eu vejo um pouco do seu andar, do seu sorriso da sua maneira de falar e rir, um pouco do seu corpo?
Não sei, as perguntas formam um emaranhado de contradições e nem eu próprio as consigo decifrar. Será que estou a ficar paranóico. Tinha piada. Ir ao psiquiatra, deitar-me num divã a contar as minhas coisas. Porque será que imagino que no psiquiatra as pessoas se deitam num divã? È o que vejo em filmes. Não sei. Nunca fui a nenhum.
Estou para aqui a divagar. Tenho frio. Não é um frio físico, é mais, digamos, espiritual. Isso existe? Não sei. Gostava de saber se ela também me enterrou nas suas recordações, mas não sei, talvez nunca o vá saber. Não tenho coragem, não quero saber a resposta. Não tenho medo das perguntas, tenho sim medo das respostas. Às vezes é melhor a incerteza do que a certeza da verdade.
Vou fumar um cigarro...estes cigarros estão a dar cabo de mim… até dores de cabeça já sinto. Mas se não fumar acho que ainda é pior. Merda, vou fumar um cigarro, um só. Até a fumar me lembro dela. Ela aspirava o cigarro como quem queria sorver o mundo num momento, com fúria, e depois ficava a fazer baforadas de fumo e a olhar para elas como se fossem coisas ou pessoas, ficava assim como que absorta. E depois ria, ria muito, com um riso tão contagiante que chegava a enervar-me. Ela parecia tão frágil.E era tão forte. Um rochedo que eu tento me libertar e onde as escarpas do mesmo se agarram como se tivessem tentáculos como um polvo.
Vou fumar mais um cigarro, só mais um...
© Piedade Araújo Sol (Dezembro 2003)
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