terça-feira, 30 de março de 2010

escrevo


escrevo na noite que o dia pariu, aferrolhada numa ambiguidade dissolvida em mágoa desmedida, quando constato que (já) não sei de ti, nem tão pouco de mim, que me perdi sem me ter perdido, num alvéolo imperfeito e tecido em incógnitas de rebeldias e lágrimas sem razão.

lá fora a chuva cai sem dar tréguas num tempo ou num destempo de tudo ( ou apenas de mim), mas sei que escrevo, como se assim pudesse lavar a alma, como lá fora a chuva lava as ruas inundando as sarjetas, e humedecendo a lama. e eu sinto um bafejo enregelado dentro e fora de mim.

escrevo e rasgo. o cesto dos papéis parece escarnecer de mim, quando faço pontaria com mais uma bola de papel, escrita em fragmentos de letras e coisas que não dizem nada de nada.(ou dizem?) .

saio e caminho por entre a chuva. sei que o dia renascerá, para mim que já nem sei de mim e para ti que (talvez) também nem saibas mais de ti. (e nem tão pouco de mim).

Tela de: betty branco martins http://bettybrmartins.blogspot.com/

terça-feira, 23 de março de 2010

Lá fora


Lá fora
O vento e a chuva
Como se fossem dentro
.
A porta da entrada
a bater ao ritmo das ondas
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O medo a dançar
No olhar sombrio
.
Contempla a porta fechada
As tábuas do soalho
Em madeira firme
.
E pensa que os barcos
Dos seus homens
Deviam ser feitos desse chão
.
De pé
Olha a chuva sem horas
Através da janela
.
Sai sem pensar
E vai passear o silêncio
Na praia de todos os naufrágios.
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Foto:Myonika

terça-feira, 16 de março de 2010

O fogo dos pássaros


escondi-me
– nua de mim –
no voo das aves .
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e choro
o choro da água de sal
a escorrer
desabando na fantasia das penas .
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e embalo a raiva do fogo
nos cabelos de trigo – seco –
que se confundem na cor
das areias.
.
deixo a nudez
a sobrevoar o medo.
.
e um dia vou – sem mim –
voar no fogo do desejo.

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Tela de :Betty Branco Martins http://bettybrmartins.blogspot.com/

terça-feira, 9 de março de 2010

O inverno e o estio dos pastores


A manhã tombou pardacenta, sobre a juventude esquecida do tempo. Não deixo que o escuro tome conta do momento que em mim desperta. Esmago e contrario o cinzento espesso das nuvens rebeldes.
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E a água da chuva cai límpida e fria sobre a cidade. Ininterruptamente. Hoje choveu todo o dia.
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Lembro de quando era menina e estava com a mãe nos campos distante de casa e quando a chuva caía sem cessar. Eu ficava aflitíssima. Ela sorria e dizia com o seu saber de mãe:

- Não tenhas medo, Deus manda sempre o estio dos pastores.
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Eu não entendia o que era. E ela explicou-me que, mesmo que chovesse todo o dia, pela tarde Deus fazia uma pequenina pausa para os pastores levarem o rebanho para os seus currais. Daí derivava a frase, o estio dos pastores.
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Com o tempo, esqueci-me desta frase, mas hoje anda tudo trocado, até o tempo! Se aqui estivesses eu dir-te-ia:
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- Mãe, hoje não houve o estio dos pastores.
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Foto : mycatherina

terça-feira, 2 de março de 2010

o abraço das águas


paro
enlameada na neblina da ilha.


o abraço das águas assassinas
tolhe-me a visão espontânea
e um cão passa, cambaleando de espanto,
enquanto as pessoas fogem para lado nenhum.

nessa tarde, abraço as lágrimas
e colho uma tempestade
que me trespassa e magoa.


hoje, nas margens do Tejo que eu amo,
continuo a ouvir o abraço das águas
num sufoco de lamentos,
igual ao do cão,
mas agrilhoado à raiva e à dor
do coro sitiado dos meus irmãos.

Foto:Izae