Chamam-me bicho do mato
Inspirado Aqui : https://brancasnuvensnegras.blogspot.com.
Fecho os olhos e lembro-me que me dizias muitas vezes, que eu parecia um bicho-do-mato.
Sim, em parte terias razão, mas digo, só em parte.
Que sabias tu de mim? Dos meus medos, dos traumas da minha infância que ainda hoje e sempre carrego comigo, do bullying na Escola Básica, mais tarde no trabalho e outros segredos meus, de que nunca falei a ninguém.
A minha infância com os meus cabelos desatados sobre um corpo magricela que era mais ossos que outra coisa.
No princípio ficava incomodada mas, quando no silêncio do meu quarto caiado a cal branca, pensava em ti, e nas tuas palavras, as outras que me dizias. Então eu deixava que os sonhos desmaiassem em mim, como pétalas de flores coloridas e perfumadas.
Depois de tanto tempo, ainda fecho os olhos e imagino-te. Por vezes sinto a minha mão sobre a tua, e o teu cheiro que ficou entranhado no meu corpo para sempre.
Sei que são apenas as boas memórias que eu quero recordar com toque de algodão, aromas de mar, e a tua boca com sabor a mirtilos.
Nós. Há muito tempo!
Sentados na esplanada da praia. Quando tu falavas dos barcos eu dizia sempre:
- Eu gosto do mar! Gosto de barcos lembra-me o meu pai.
Sabes, ainda sou bicho-do-mato, ainda tenho os mesmos amigos de há vinte anos, ainda ando com o cabelo desatado, e os meus segredos, serão sempre só meus, órfãos de pai e mãe, alguns em forma de sonhos outros em pesadelos, que ainda me visitem durante a noite cheia de sobressaltos com o corpo em completo alvoroço, e com um gosto amargo na boca.
Tu não sabes, mas além de ser um bicho de mato, eu sempre tive medo do escuro.
Ah! E ainda durmo com uma luz de presença.
Isso também não é proeminente.
A saudade talvez seja, mas é uma saudade boa que ainda e sempre guardo de ti…
© Piedade Araújo Sol 2021-02-08
Etiquetas: Piedade Araújo Sol, poesia
20 Comentários:
Gostei muito deste texto, desta confissão e como compreendo o que escreveu porque, também de mim, ainda hoje, dizem que sou bicho-do-mato.
Bonito. Um abraço.
Sabes?
Por vezes queria, gostava, ser bicho do mato
Dar-me-ia mais defesas, mais descanso
Contudo, não consigo pois sempre reajo
Por exemplo. Ao primeiro impulso,
apetece pegar no teu texto
ir declamá-lo por tudo o que é lado
Te deixo, um doce abraço
Muito lindo este repassar a vida, com todas as suas sequelas e mazelas, mas que guarda coisas e momentos bons, que eternizam e que aconchegam em noites fundas e frias onde o medo ainda impera, mas que não se desespera sob uma tênue luz acesa num canto do quarto.
Linda inspiração no bicho do mato, que de bicho não tinha nada.
Uma boa semana com todos os cuidados.
Beijo e paz Piedade.
Bom dia Piedade,
Um texto muito belo e bem escrito que me remeteu ao fundo da minha alma.
Beijinhos e ótimo dia.
Ailime
Também dizem o mesmo de mim...
Mas há dias em que o Sol é só nosso e pintamos o dia com cores novas...
Nem todos veem … nem todos compreendem...mas é um segredo fascinante...
Gostei muito...
Beijos e abraços
Marta
Bom dia, Piedade :)
O bicho do mato que sou saúda o bicho do mato que é,
faz-lhe uma vénia, sorri e dá-lhe as boas vindas a este mato onde, quando se está sozinho, nunca se está só.
Beijinho.
Mª João Brito de Sousa
Uma prosa poética muito bonita! Adorei :))
-
Vagueiam sonhos da minha ilusão
-
Beijo e um bom dia (de carnaval, em casa)!
Piedade, vesti seu texto sem tirar as medidas e me coube perfeitamente. Fui e talvez ainda seja bicho do mato. Assim me chamavam quando, na "cidade grande", comportava-me como a menina do interior, bem magra e fugidia.
Sua postagem ficou encantadora, com esse acordar lembranças, desnudando vida e cantando uma saudade terna. Grande beijo!
Gosto do que li. Trataste um assunto delicado, que perturba muita gente, muitas vezes desde tenra idade. De forma bilhante.
Mas bichos somos todos, podes crer. Aqueles que chamam ao outro na sua expansiva expressão arrogante "Bicho-do-Mato!" ainda o são mais: são bichos-de-conta a enrolarem-se sobre si, fechando-se numa carapaça de egoísmo.
Beijo.
Saudades é uma palavra boa, doce. Tem cheiro de relva. De terra molhada. Saudades se tem quando se tem boas lembranças. E boas lembranças completam o que faltou e quando elas chegam a chamamos de camaradas a depender do caminho que fizeram para chegar a nós.
Um belo texto, este bicho do mato!
Um abraço, Piedade!
A introspecao é sempre uma fuga de nós mesmos.
Resta saber até onde😉
Gostei
Magnífico, magnífico texto!
Aceitarmo-nos como somos e compartilhar segredos exige muita coragem, mas traz serenidade.
Beijo.
Piedade, esse teu desnudar de emoções, e a tua coragem para os descreveres desta forma, comoveu-me profundamente.
"Os bichos do mato" vivem num mundo aparte e desenvolvem aptidões únicas para se defenderem da realidade.
Poesia, música, pintura, são as (nossas) realidades.
Uns destacam-se, o que é o teu caso, outros vão tentando...
Um beijinho
Fê
Que texto tão bonito, Piedade. Mais do que bonito, emocionante.
Abraço e saúde
Um texto magnífico, gostei imenso.
Bom fim de semana, querida amiga Piedade.
Beijo.
Haja quem cante mesmo em silêncio
Piedade,
que belo texto, tecido de pura sensibilidade!
É bom ser-se aquilo que se foi, embora na memória de uma ausência.
Beijinho
Muitas são as linhas com que tecemos a nossa vida. As cores e as formas podem variar, mas há sempre algo que temos em comum: a vontade de ser, a vontade de amar e ser amado(a), a vontade da plenitude...
Sensibilizou-me, Piedade.
Um beijinho :)
Eu sou o contrário tão revolta como as ondas do mar.
E sempre sincera demais, sem levar desaforos para casa, contudo também com um lado muito sensível e humano.
Com muito segredos para contar.
Guardados no baú do tempo.
Quanto à luz, quando sozinha sou adepta.
Beijinho no coração, Piedade!
Megy Maia☔💮☔
Que texto, minha Amiga Piedade! Sabe que me identifiquei com ele? Só agora não me sinto bicho do mato porque acho que "engoli" o mato todo...
Cuide-se bem.
Uma boa semana.
Um beijo.
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