terça-feira, 2 de outubro de 2018

Não sei quem sou


Nada se dilui no pardacento da tarde. É quase noite em mim. Não me lembro das manhãs. Muito menos das madrugadas mais longínquas no meu corpo. Olho-me no céu. Parece que vai chover. As terras estão secas como eu. Há tantos dias que os meteorologistas anunciam a chuva. Mas do céu não cai uma gota sequer. E eu a precisar do gosto da chuva no meu corpo. As terras estão ressequidas. Esquecidas de Deus. Que também se esqueceu de nós. Os velhos dizem que é a maior seca dos últimos trinta anos. Eu não sei há quantos anos dura a minha estiagem. Nem tenho ainda essa idade. Ou será que tenho…?!

Já não sei nada de nada. Às vezes gostava de saber os tempos dos velhos da aldeia. O tempo das sementeiras. O tempo para plantar as batatas no pedaço de terra ideal. O tempo das cebolas e por aí adiante. Gostava de saber os meus tempos. Das sementes que a minha terra não vê plantadas. Os meus campos enjeitados. A casa de pedra vazia de sonhos. O poço sem água. Os jardins sem flores. As trepadeiras retorcidas. Exauridas em abraços de morte a paralisar o corrimão. Tudo vazio de sons. De mim e de todos nós. Desfaleço como as paredes da casa que contam histórias a ninguém. Já não estamos lá. Nem os velhos para dizer o tempo.

Olho o céu. Talvez chova. É noite em mim. Deito-me diluída na cama.Na posição fetal. A madeira é demasiado sólida para este corpo quebrado e mirrado . Observo alheada a parede pintada a cal branca do quarto. Eu, trepadeira retorcida na chuva que não cai. As paredes cheias de nada. Não sei por que me deito nesta cama. Onde não durmo. Tantas noites em branco na parede branca que me espreita com um desgosto negro. Este corpo que se deita nesta ou noutra cama. Nesta ou noutra parede.Neste ou noutro País. Não é o meu corpo. É mais um corpo. Não sei de quem é. Os velhos dizem que perdi a memória. Talvez seja verdade! Talvez seja por isso que já não sei quem sou...

©Piedade Araújo Sol 2008/03/17

9 Comentários:

Blogger Rogério G.V. Pereira disse...

Nenhum texto me deprime
mas, confesso,
quase o conseguiste

Sou velho
e nunca te diria que tua memória está perdida

terça-feira, 02 outubro, 2018  
Blogger Marta Vinhais disse...

Há momentos em que não temos a certeza de nada... E o nada é pesado...
Lindo...
Beijos e abraços
Marta

terça-feira, 02 outubro, 2018  
Blogger Os olhares da Gracinha! disse...

Por vezes sentimos esta inquietude na alma!!!
Bj

terça-feira, 02 outubro, 2018  
Blogger Cidália Ferreira disse...

Uma intensa prosa poética, soberba!! Amei ler!

Beijos e um excelente dia!

terça-feira, 02 outubro, 2018  
Blogger Larissa Santos disse...

Intenso e profundo. Mas ,muito belo:))

Bjos
Votos de uma óptima Terça - Feira

terça-feira, 02 outubro, 2018  
Blogger Agostinho disse...

"Do céu não cai uma gota sequer" e as abelhas recolheram-se perdidas no tempo. Tempo que não atina na estação e deixa as cepas sem tempo no desespero do vazio.
Composição muito bela que nos deixa na boca um travo de desespero alienante a caminho da depressão. A esperança, contudo, nem é necessâria pois há a certeza que virá a tormenta que nos abalará até à raiz e livres para nova vida, por fim.
Beijo, Piedade Sol.

quarta-feira, 03 outubro, 2018  
Blogger Elvira Carvalho disse...

Um texto deprimente, amargo, onde não se vislumbra uma réstia de esperança. Que se passa Piedade? Porquê a reedição deste texto de há dez anos? Com tanta coisa bela escrita de então para cá? Deixou-me preocupada.
Forte abraço.

quarta-feira, 03 outubro, 2018  
Blogger Graça Pires disse...

Magnífico o seu texto, minha Amiga Piedade! Gosto sempre de uma boa prosa poética.
Uma boa semana.
Um beijo.

segunda-feira, 08 outubro, 2018  
Blogger Ana Freire disse...

E como é difícil, por vezes, não nos deixarmos descaracterizar, pelos atropelos da vida... e continuar a reconhecermo-nos, apesar de tudo...
Mais uma prosa poética, absolutamente notável, Piedade! Emoção e profundidade, em cada linha... Adorei!!!
Beijinho
Ana

sábado, 10 novembro, 2018  

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